domingo, 30 de janeiro de 2011

Uma Família

A mãe cortava os vegetais concentrada. Sua filha assistia curiosa, sentada na cadeira com as pernas penduradas. Ajeitou sua boneca na mesa para que assistisse junto dela.

– Queria saber porque ele tem que fazer aquilo logo hoje. - reclamava a mulher - Não podia deixar para o fim de semana? Michele, vá chamar seu pai. O jantar ficará pronto em breve.

Cuidadosa, a garota descia as escadas, dirigindo-se ao porão. Balançava o brinquedo, cantando alegremente. A porta estava fechada. A criança era baixa demais para alcançar a maçaneta. Nem sua amiga conseguiu resolver o problema. Ouvia-se gemidos abafados vindos do outro lado. Bateu na porta. Ela abriu.

Oi meu anjo. - dizia o pai.

– A mamãe falou que daqui a pouco servirá o jantar. - informou a menina.

– Certo. Eu já estou terminando aqui.

Entrando, viu um homem preso numa maca, com um pano amarrado entre os dentes. O pai pegou um facão e decapitou-o. Guardou a faca e foi se lavar. A garota olhava o morto sangrando.

– Papai, porque sai suco das pessoas? - perguntava a pequena, inocente.

– Eu não sei. - disse ele - As pessoas são assim querida.

– E porque você faz isso com elas?

– Para me distrair. Me entreter.

– Então é assim que você brinca?

– Isso mesmo queridinha. - deu uma curta risada.

Aaah! Eu queria brincar com o papai! - iniciou um choro e esperneou.

– Calma filhinha. Eu prometo que da próxima vez te trago e brincamos juntos.

– Promete? - enxugava os olhos.

– Sim. Vamos subir agora. - Colocou-a nos ombros e foi para a cozinha.

Os pratos estavam servidos. Assentaram-se e começaram a comer. A menina fatiava seu bife. Gemia baixo, fingindo serem gritos de sua vítima dentre os legumes.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Costumes

– Já faz um bom tempo, ? - lembrava ela.

– Pois é. - concordava ele - Parece que foi ontem que nos conhecemos.

– É mesmo. Eu sempre rio quando recordo.

– Eu também. Só de pensar em você encostada naquela árvore, pensativa. Depois eu, fingindo querer uma informação, apenas para poder conversar contigo.

– Achei aquilo muito besta. Acabei gostando de você.

– Ao menos valeu a tentativa.

– Com certeza.

– Desde então, apesar de sabermos que esse momento chegaria, aproveitamos cada dia de nossa união.

– Passou tão rápido. Agora a hora chegou.

– Eu sei. As vezes eu queria que não chegasse. Continuar com você. Ver meus filhos nascerem e cuidar deles.

– Querendo ou não, devemos fazê-lo. Nossa espécie faz isso há gerações. É uma tradição. Você sabe.

– O importante é que meu amor por você não mudará.

– Nem o meu.

– Pode contar para eles sobre mim?

– Claro que conto. Prometo. Nem precisava pedir. Vamos? - ela perguntou com uma feição triste.

– Sim.

Após acasalarem, a Dona Aranha matou seu marido.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Incêndio - parte final

– Como assim, estou falando com ele? - Antônio ainda não compreendia a situação.

– É exatamente o que ouviu. - afirmava Júlia - Eu matei os dois.

– Não pode ser. Sem chance! Por que você os mataria?

– Eu tenho os meus motivos.

– Que motivos? - o detetive aumentava seu tom de voz.

– Vingança. - a assassina pegou a partitura no piano e levantou do assento. - Como já sabe, Pedro e eu estudamos juntos naquela escola por um bom tempo. Durante esses anos, ele me fez de um objeto de divertimento. Toda hora me ridicularizando na frente dos colegas e professores. Não tive um só amigo naquela época por causa dele. Odiava ele, mas nunca tive coragem de atacá-lo. O garoto me infernizou até o final dos meus estudos. Saindo da escola, me senti aliviada. Pensei que não o veria novamente, e que ele não alcançaria nada na vida com seu jeito grosseiro.

– Até descobrir que ele se tornou um médico.

Exato. Não poderia perdoá-lo por me torturar e tornar-se um doutor tão renomado. Porém, não bastaria queimá-lo e ir embora. Precisava causar uma dor enorme nele. Matar seu filho era a melhor maneira de fazê-lo sofrer. Resolvi entrar para a polícia. Me transformar numa investigadora. Ninguém suspeitaria de mim se fizesse parte da investigação do crime que eu mesma cometi. Só não contava com uma coisa.

– O que?

– Me apaixonar por você.

– Por que está me contando tudo isso? - lágrimas escorriam no rosto de Antônio.

– Por que eu te amo. E por mais que tentasse, não aguentava esconder isso de você. Sabia que me procuraria se eu sumisse. Então deixei o corpo e o bilhete no meu apartamento, para te atrair e contar toda a verdade.

– Eu não acredito! Como pôde? E quer que eu aceite numa boa, é?

– Bem que eu gostaria. Contudo, conhecendo seu apego pela justiça, provavelmente não. - Júlia também passou a chorar. Largou a partitura e sacou um revólver. Apontou para a própria cabeça.

– O que vai fazer? Não faça isso Júlia!

– Eu sempre sonhei em morrer incendiada. Vejo que não será mais possível. - engatilhou a arma.

– Pare!

– Amo você. - e atirou.

– Eu...também. - Antônio caiu de joelhos, amargurado.

Os policiais passaram no apartamento da detetive e acharam o bilhete. Seguiram o endereço marcado e chegaram no teatro. Não encontraram os investigadores lá dentro. Antônio se retirou antes de aparecerem. Levou a amada para a casa dele. Nos fundos, colocou-a sobre uma mesa. Pegou uma garrafa e derramou seu conteúdo na mulher. Acendeu um fósforo e o jogou nela. Chorando, observou o fogo consumi-la.

– Como você sempre sonhou.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Incêndio - parte 4

Antônio se desesperou. Respirou fundo, procurando acalmar-se. O que faria? Pensou rápido e ligou para a polícia, informando ter achado o Dr. Pedro. Saiu do apartamento e seguiu para o endereço. Não levou o bilhete. Conhecia o local do encontro.
Chegou em um teatro abandonado. Há muito tempo, houve um incêndio durante uma apresentação. O fogo espalhou-se rapidamente. Poucos sobreviveram à tragédia. Desde então, o lugar foi fechado. Embora o incidente tenha danificado boa parte do estabelecimento, ele continuou de pé. O detetive percebeu uma melodia vindo de dentro. Entrou, seguindo o som. Enquanto andava, tropeçou em alguns galões de combustível vazios. Foram usados recentemente. No palco, viu alguém tocando piano. Ao se aproximar do instrumento, o investigador ficou espantado. Não com a bela música, mas com o indivíduo que a produzia.

– Eu nunca te contei que tocava piano, ? - dizia a moça, finalizando sua música.

– Júlia?! - Antônio estava confuso - O que aconteceu? Onde está o assassino?

– Está falando com ele.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Incêndio - parte 3

As chamas cobriam a casa. Antônio não conseguia contatar Júlia. Os bombeiros atiravam água com suas mangueiras. Após apagarem o fogo, o investigador entrou. Não encontrou o médico lá dentro. Estaria no hospital? Decidiu procurá-lo. Chegando no local, perguntou pelo doutor. Disseram não tê-lo visto desde manhã. O detetive ficou preocupado. Sabia que o incêndio não foi acidental. Entretanto, nenhum dos vizinhos viu alguém estranho entrando ou saindo da residência. Na delegacia, falaram que o Dr. Pedro não apareceu para o reconhecimento do corpo. “Isso é mau.” pensava ele.
Incomodava-se também com a parceira. Ela não atendia o celular, nem o telefone residencial. Foi até o apartamento dela. Tocou a campainha. Duas. Três vezes. Sentiu cheiro de algo queimando. Arriscou girar a maçaneta. A porta estava aberta. O odor vinha do banheiro. Dentro do box, um cadáver em chamas. Antônio apressou-se em ligar o chuveiro. Brevemente, o líquido esfriou o defunto. Notou um bilhete sobre a pia. Nele, um endereço, acompanhado de um recado: “ Venha, ou ela ficará como seu amigo aí”.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Incêndio - parte 2

Antônio acordou e notou que a namorada não se encontrava na cama. Júlia estava na sala, tomando leite e assistindo desenho. Disse “Bom dia!” e sentou no sofá.

– Tive um sonho ótimo! - falou a moça, entusiasmada.

– Sobre o que? - perguntou o dorminhoco.

– Fogo.

– E isso é um sonho “ótimo”?!

– Eu fiquei excitada. Você sabe que eu adoro fogo. Não existe algo mais lindo.

– Você e sua obsessão por fogo. - ele observou a bagunça do quarto - Se isso te excita tanto, vou acender uma fogueira da próxima vez que transarmos.

– Besta... - Júlia terminava sua bebida - Ligaram dando notícias sobre o corpo. Foi identificado. É mesmo o tal do Roberto.

– Entendo. É hora de darmos mais uma visita ao Dr. Pedro.

A primeira vez em que os investigadores visitaram o médico foi em razão do sequestro do menino. A situação agora era outra.

– Vocês de novo?! - reclamava o doutor, com os olhos lacrimejando.

– Vejo que recebeu a notícia. - dizia Júlia.

– Recebi. E daqui a pouco o verei, portanto, sejam rápidos.

– Certo - concordou Antônio - Conhece alguém com motivos para matar seu filho? Alguma pessoa que não gostasse dele, ou do senhor?

– Não. Dificilmente conversava com ele. Ficava no hospital o tempo todo. Acabei deixando-o de lado. E agora... se foi.

Pedro começou a chorar na frente deles.

– Nós o deixaremos em paz. - a detetive tentava consolá-lo - Sentimos muito por sua perda.

Enquanto saía, um pensamento passou pela mente de Antônio.

– Vocês estudaram naquela escola, não estudaram?

– Estudamos. - contava Júlia - Na mesma turma por várias vezes. Porém, não éramos tão próximos.

– Consegue lembrar de alguém daquela época que fosse contra o atual doutor?

– Desculpe, não.

– Isso dificulta as coisas. Vamos para a delegacia e...

– Vá você. - interrompeu ela - Voltarei para casa. Tenho uns assuntos a serem resolvidos. Mais tarde eu apareço por lá.

– Tudo bem. Nos vemos depois.

O detetive se despediu e seguiu seu rumo. A investigação não andava bem. Nenhuma digital ou vestígio do assassino foram encontradas na cena do crime ou no bilhete que ele deixou. Sem falar na falta de suspeitos. Não havia um. Enquanto trabalhava, um policial se aproximou.

Detetive, acabamos de receber um chamado...

– Do que se trata?

– Um incêndio.

– E eu tenho cara de bombeiro?

– Não, senhor. Mas acontece que é na residência do doutor Pedro.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Incêndio - parte 1

Pessoas passavam curiosas, querendo saber o que havia acontecido. Os policiais as afastavam do local. Na escola entrava um homem. Ia em direção a uma mulher. Estava próximo de beijá-la.

– Não durante o trabalho. - disse Júlia, censurando os lábios dele com os dedos.

Aah... - Antônio deu um suspiro e sussurou um “ok” no ouvido dela.

Um policial aproximou-se dos dois.

– É por aqui. - disse ele.

Os detetives, guiados pelo oficial, se dirigiram à cena do crime. No meio do pátio tinha um cadáver completamente queimado. Parecia ser de um adolescente. Ao lado do morto, um papel. “Fiquem de olho” dizia ele, com letras de forma verdes.

– Quem será esse coitado? - perguntava-se Júlia.

– Eu tenho um palpite - sugeria Antônio - Lembra daquele garoto que foi sequestrado faz alguns dias?

– Sei... Roberto, não era?

– Fiquei sabendo que ele estudava nesta escola.

– Então é possível que seja ele. Mas antes devemos esperar examinarem o corpo. Só assim teremos certeza.

– “Fiquem de olho”. Eu tenho a impressão de que haverá mais vítimas.

– Nesse caso, é melhor seguirmos o conselho dele - a detetive segurou o braço do parceiro - Na sua casa ou na minha?

– Você é quem sabe.

– Faremos na sua.

– Só se formos agora!

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

À Beira

Do topo do prédio, olhava para baixo. Fechou os olhos e se jogou. Aguardava o impacto fatal. Estava demorando. Resolveu ver o que acontecia. Teria se enroscado? Não. Encontrava-se parado em pleno ar. Enxergava minúsculas pessoas e carros no solo. Porém nenhum deles se movia.

– Bem alto, não? - dizia uma mulher em um vestido florido e cheio de babados, enquanto bebia seu chá sentada em uma cadeira.

O homem ficou calado. Tentava entender de onde aquela moça veio. Ela era magra, de pele escura, cabelos crespos e castanhos. Com seus olhos verdes, observava o suicida, aguardando alguma reação dele.

– Seguinte. Se vai ficar quieto aí me olhando, vou deixar que continue sua queda. - disse ela, impaciente.

– Quem é você? - perguntou ele então.

– Eu sou Cátia, prazer.

Ficaram em silêncio por um momento.

– E meu nome, não vai perguntar? - indagou ele.

– Não me interessa, vai morrer mesmo. - respondeu ela, indiferente.

– Se não te interessa, por que apareceu?

– Eu teria que te buscar de qualquer jeito. Quis me antecipar.

– Me buscar? - refletiu um pouco e encontrou uma razão para esse “buscar” de que ela falava. Assustado, questionou - Você é... a morte?

– Sim. – disse Cátia, depois de dar uma golada na bebida – Mas não gosto desse apelido. Prefiro que me chamem pelo nome.

– Não entendo. Se você é a morte e veio me levar, não deveria ter aparecido depois de eu cair?

– Eu estava aqui por perto. E esse trabalho é tão tediosos as vezes. Pensei em quebrar a rotina um pouco. - Olhou dentro da xícara - Aah, já acabou?! Vou buscar mais, já volto.

No mesmo instante, o homem voltou a sentir a gravidade lhe puxando. Em segundos, chocou-se com o chão. Agora era uma alma, de pé, observando um cadáver no asfalto.

– Quer um gole do meu chá? - ofereceu Cátia, aproximando-se.

– Não. Prefiro café.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Nascimento

Os demônios queriam criar um novo ser. Algo tão inteligente como eles. Após várias tentativas, por razões desconhecidas, ele surgiu. Em aparência, era diferente. Mas apresentava sentimentos, capacidade de aprender e se adaptar. As análises feitas também mostraram que a nova criatura era fêmea. Curiosos, usaram seu sangue e tentaram fazer um macho. Num novo ritual, conseguiram. Os alquimistas estavam admirados com a descoberta. Chamaram a nova espécie de “humana”. Em uma questão de tempo, ensinaram todo o seu saber as crias. Conviveram anos juntos. E a nova espécie procriou. Então, um dia, se revoltaram. Sentiam-se controlados. Usados. Fizeram uma rebelião. Muitos demônios morreram. Os poucos que restaram esconderam-se no subterrâneo, com medo, enquanto observaram sua criação desenvolver-se e fazer suas próprias descobertas em um mundo ainda desconhecido.